Edição nº 99
Dos bastões e das regras
No outono de 2003, estava passeando no meio da noite pelo centro
de Estocolmo, quando vi uma senhora que caminhava usando bastões
de esqui. Minha primeira reação foi atribuir aquilo
a alguma lesão que tivesse sofrido, mas notei que ela andava
rápido, com movimentos ritmados, como se estivesse em plena
neve só que tudo que havia a nossa volta era o asfalto
das ruas. A conclusão óbvia foi: essa senhora
é louca, como pode fingir que está esquiando em uma
cidade?
De volta ao hotel, comentei o fato com meu editor. Ele disse que
louco era eu: o que eu vira era um tipo de exercício conhecido
como caminhada nórdica (nordic walking). Segundo
ele, além dos movimentos das pernas, os braços, os
ombros, os músculos das costas são utilizados, permitindo
um exercício muito mais completo.
Minha intenção ao caminhar (que, junto com o tiro
com arco e flecha, são meus passatempos favoritos), é
poder refletir, pensar, olhar as maravilhas ao meu redor, conversar
com minha mulher enquanto passeamos. Achei interessante o comentário
de meu editor, mas não dei maior atenção ao
fato.
Certo dia, estava em uma loja de esportes para comprar material
para as flechas, quando notei novos bastões usados por montanhistas
leves, em alumínio, que podem ser abertos ou fechados,
usando o sistema telescópico de um tripé fotográfico.
Lembrei-me da tal caminhada nórdica: por que
não experimentar? Comprei dois pares, para mim e para minha
mulher. Regulamos os bastões para uma altura confortável,
e no dia seguinte resolvemos utilizá-los.
Foi uma descoberta fantástica! Subimos e descemos uma montanha,
sentindo que na verdade todo o corpo se movimentava, o equilíbrio
era melhor, o cansaço era menor. Andamos o dobro da distância
que sempre cobrimos em uma hora. Lembrei-me de que certa vez tentara
explorar um riacho seco, mas as dificuldades com as pedras em seu
leito eram tão grandes, que desisti da idéia. Achei
que com os bastões seria bem mais fácil; e estava
certo.
Minha mulher entrou na internet, e descobriu: queimava 46% mais
calorias que uma caminhada normal. Ficou entusiasmadíssima,
e a caminhada nórdica passou a fazer parte do
nosso cotidiano.
Certa tarde, para distrair-me, resolvi também entrar na internet
e ver o que tinham sobre o assunto. Levei um susto: eram páginas
e mais páginas, federações, grupos, discussões,
modelos, e...regras.
Não sei o que me empurrou para abrir uma página sobre
as regras. Enquanto lia, ia ficando horrorizado: eu estava fazendo
tudo errado! Os meus bastões deviam ser regulados em uma
altura maior, tinham que obedecer determinado ritmo, determinado
ângulo de apoio, o movimento do ombro era complicado, existia
uma maneira diferente de usar o cotovelo, tudo seguia preceitos
rígidos, técnicos, exatos.
Imprimi todas as páginas. No dia seguinte e nos que
se seguiram tentei fazer exatamente aquilo que os especialistas
mandavam. A caminhada começou a perder o interesse, eu já
não via as maravilhas à minha volta, pouco conversava
com minha mulher, não conseguia pensar em nada além
das regras. No final de uma semana, me fiz uma pergunta: por que
estou aprendendo tudo isso?
Meu objetivo não é fazer ginástica. Não
creio que as pessoas que faziam sua caminhada nórdica
no início, tivessem pensado em nada além do prazer
de andar, aumentar o equilíbrio, e movimentar o corpo inteiro.
Intuitivamente sabíamos qual era a altura ideal do bastão,
como também intuitivamente podíamos deduzir que quanto
mais perto eles estivessem do corpo, melhor e mais fácil
o movimento. Mas agora, por causa das regras, eu tinha deixado de
me concentrar nas coisas que gosto, e estava mais preocupado em
perder calorias, mover os músculos, usar certa parte da coluna.
Decidi esquecer tudo que tinha aprendido. Hoje em dia caminhamos
com nossos dois bastões, desfrutando o mundo ao redor, sentindo
a alegria de ver o corpo sendo exigido, movido, equilibrado. E se
eu quiser fazer ginástica ao invés de uma meditação
em movimento procurarei uma academia. No momento, estou satisfeito
com minha caminhada nórdica relaxada, instintiva,
mesmo que talvez eu não esteja perdendo 46% de calorias a
mais.
Não sei por que o ser humano tem esta mania de colocar regras
em tudo.
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